A Festa

O ponteiro das horas apressa-se na casa imprecisa do muito que falta fazer. A azáfama faz-se de cores e sonidos familiares, em alegre disputa com os aromas agudos e com aquela peculiar cor de melaço, que tudo permeia, derramando-se em broas e bolos na generosidade das memórias felizes. Rompendo a muralha da rotina, o Natal chega à cidade com o manto de mil e uma lamparinas a cada esquina, delineando os vértices do dia-a-dia em furores de fantasia e repartindo rumores de gente pelas ruas. No deambular necessário, ponto culminante da ronda pelas mercearias da época (e pelas tascas escondidas), o Mercado: coração dos reencontros e palco dos efusivos votos que se estendem ao tal rosto conhecido (cujo nome nos escapa) que ali nos esbarra, uma vez por ano, por capricho insondável de um universo insistente e repetitivo. Uma banca de tangerinas agasalha os sentidos de quem vai passando, atraindo as pernadas sem destino certo e recordando a secura que persiste na garganta. Ao lado, sapatinhos e galhos de cedro, musgos e “cabrinhas”, elevam o espectro do verde ao trono do Menino, na escadinha que falta terminar, lá na longínqua aparição da sala de estar da avó, em mesa intervalada por searinhas e biscoitos furtivos. Por fim, como parêntesis inevitável e insubstituível, a sandes de carne de vinha d’alhos, engolida ao balcão, como ordena a pressa de quem tem a vida à espera ao virar do ano. De tradição se reinventa a Festa, invariável em sua força, mas sempre predisposta a criar novas memórias e a deixar um lugar para os afectos que se abeiram, furtivamente, da mesa da consoada.