O fogo que veio do céu

A Rua da Queimada de Cima e a Rua da Queimada de Baixo devem o seu nome a um estranho acontecimento que marca os primórdios da narrativa urbana. Entre 26 e 27 de Julho de 1593, num tempo em que grande parte do casario do Funchal era de tabuado, um misterioso “fogo do céu” desce sobre a cidade, provocando um incêndio tenebroso que se espalha desde a Rua do Sabão até às muralhas da Fortaleza de São Lourenço. Gaspar Frutuoso fala em 154 casas queimadas e mais de 5000 pães de açúcar destruídos. Nos dias que antecederam a calamidade, a Ilha havia sido assolada por uma vaga de calor extremo e vento forte, o conhecido “Leste”. “Não havia pessoa viva que saísse de casa nem abrisse a janela”, pois “o vento era tal que parecia queimava os ossos”, descrevia uma testemunha.  A enigmática incandescência atmosférica, que mantendo a presença no firmamento assumia natureza diferente de um raio de trovoada, havia surgido algum tempo antes de se precipitar sobre a cidade. Do invulgar acontecimento ficará a designação das ruas e a memória da calamidade.

As Gárgulas da Alfândega

Impercetíveis aos olhares de quem circula pela azáfama habitual da rua estreita, espreitando lá do alto do antigo edifício manuelino da Alfândega do Funchal, actual Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, quatro gárgulas sacodem o peso de cinco séculos cumprindo a velha função de desaguadouros. São raros resquícios de um imaginário medieval bizarro, preservado nesta fachada nortenha de um dos mais antigos edifícios da cidade. Estes exemplares assumem particular interesse, não só pela raridade, dimensão e bom estado de conservação, mas sobretudo pela qualidade e nobreza do trabalho escultórico: as grotescas figuras humanas e os animais em pose desafiadora estimulam a imaginação e acordam uma espécie de memória epidérmica da cidade, onde o tempo se torna espaço de encontro com as lendas de sempre.

O fantasma do convento

No segundo decénio do século XVI, num episódio que será relatado por vários cronistas, andou o Convento de Santa Clara em sobressalto com a ocorrência de fenómenos estranhos. Quando, durante a noite, as freiras procediam à leitura dos ofícios divinos, ouviam gemidos e suspiros, sentiam o arrastar de mobília e o oscilação de paredes. O fenómeno, recorrente, havia provocado o pânico entre as religiosas. Conta-se que João Rodrigues Burio, mestre-escola do convento, decidiu confrontar a razão de ser de tal actividade anormal. Certa noite, findas as orações, encerrou-se sozinho na igreja e aguardou. Diz-se que terá, de facto, encontrado um fantasma que confrontou –  a alma penada de um reputado homem de linhagem, recentemente sepultado naquele recinto sagrado, e condenado a ali vaguear por ter duvidado da fé à hora da morte. A solidão e o rigor da vida monástica poderão ter reclamado o seu preço e espoletado o poder da imaginação… talvez. Certo é que Gaspar Frutuoso, Frei Manuel da Esperança e Henrique de Noronha aludem a este episódio, esclarecendo que a serenidade só voltou depois de desenterrado o morto. No lugar da nova sepultura, fora dos muros, numa achada sobranceira ao convento, foi colocada uma cruz – procedimento que, segundo dizem, terá dado origem ao nome que ainda hoje lá perdura: Cruzes.

Um rei sepultado na Rua da Carreira

George Oruigbiji Pepple, conhecido por Perekule VII, foi um monarca do extinto Reino de Ubani, na actual Nigéria. Subiu ao trono a 30 de Setembro de 1866, com 17 anos de idade, tendo sido deposto a 14 de Dezembro de 1883 na sequência de oposição interna que via com preocupação a sua proximidade ao Reino Unido e a sua religião cristã (que o havia impelido à impopular medida de proibir a adoração de iguanas nos seus domínios). Em 1886 consegue recuperar o poder, graças à intervenção dos seus aliados britânicos, vindo a falecer dois anos depois, no Funchal. O Rei George está sepultado no Cemitério Britânico da Madeira, que tinha a sua entrada principal original à Rua da Carreira, um local que, no dizer de outro famoso ocupante, Paul Langerhans (cientista descobridor do mecanismo produtor de insulina e da célula de Langerhans), era “um bom lugar para descansar…”

A pintura que escapou a Hitler

Um tríptico flamengo, representando a Descida da Cruz e atribuído ao pintor Gerard David de Bruges, teve uma vida atribulada. Pintada entre 1518 e 1527, a obra terá sido encomendada por Jorge Lomelino e inicialmente destinada ao Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz, onde permaneceu até ser transferida para uma capela do Claustro de São Francisco, no Funchal. Com a demolição deste último, a obra acabou numa arrecadação da Igreja de Santo António da Serra, onde foi adquirida pelo Major Américo Olavo, em 1915. Ficando algum tempo na Quinta da Palmeira, foi depois enviada para restauro em Lisboa. Por morte do Major, a pintura é vendida ao austríaco Adolf Weiss e embarca para Viena, onde é novamente restaurada e estudada por Max Friedelander, que a atribui a Gerard David. A presumida autoria e a qualidade da obra despertam o interesse do Marechal Hermann Göring (notório pela campanha de roubo e compra forçada de obras de arte para a colecção privada do Führer), que apresenta a Weiss uma proposta de aquisição. Em pleno cenário de Segunda Guerra Mundial, o tríptico é enviado para Berna, na Suíça, escapando, assim, à cobiça nazi. Em 1944 é comprado pelo Estado Português, regressando ao país em 1954, em transporte realizado por mala diplomática. Encontra-se, hoje, no Museu de Arte Sacra do Funchal.

A fortaleza escondida

Compondo a linha defensiva da costa funchalense, o quase esquecido Forte dos Louros assume um carácter diferente de outras fortificações mais proeminentes. Foi mandado erguer no decorrer do século XVII, pelo comerciante Diogo Fernandes Branco, na íngreme colina sobranceira à foz da Ribeira de Gonçalo Aires, como reduto particular. Obra de natureza privada, tinha por declarado objectivo a defesa dos interesses económicos da família Fernandes Branco, pela protecção do desembarcadouro que servia as suas propriedades no sítio dos Louros. Possuía uma arrojada muralha que sustentava uma praça de planta rectangular com capacidade para cinco peças de artilharia. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, Governador da Madeira no final de Setecentos, pretendeu ali instalar uma fábrica de seda, o que nunca se concretizou. A velha fortificação, desactivada há mais de duzentos anos, encontra-se, agora, em ruínas e quase camuflada pelo emaranhado de novas construções e pela soberania dos silvados, passando desapercebida a quem não a procure…

Uma procissão peculiar

No ano de 1521, grassando a peste na cidade, João Gonçalves da Câmara e o Senado do Funchal decidem apelar ao patronato celeste para pôr cobro ao flagelo. Num sorteio que contou com os nomes dos doze apóstolos, de São João Baptista, da Virgem Maria e até do próprio Cristo, recaiu a escolha sobre um dos menos conhecidos discípulos de Jesus: São Tiago Menor. Determinado o clínico para tão grave doença, cessou a plena autoridade do Guarda-mor da Saúde, habitualmente encarregado de tomar providências durante crises sanitárias, que cedia o seu pouco invejável lugar e responsabilidade ao Santo eleito. Segundo os relatos, a medida extrema terá revelado eficácia no próprio dia da primeira procissão de prece, a 1 de Maio de 1521. Em sinal de reconhecimento, e assumido plenamente o patronato da cidade, passou a Câmara do Funchal a promover, anualmente, a festa e procissão do voto de São Tiago, com pompa idêntica à solenidade de Corpus Christi e com a folia digna de… um desfile de uma escola de samba? Bem… sim. A procissão patronal contou, até ao século XVIII, com a obrigação de nela se executarem danças burlescas, entregues aos cuidados coreográficos dos grupos representantes dos 24 ofícios tradicionais e aprimoradas com a presença de gigantones. Em verdade, a não execução das danças, ou a omissão da presença dos adereços habituais, era severamente censurada com a aplicação de multas, devidamente inscritas no Livro das Vereações.

Angústias

O comum visitante do Parque de Santa Catarina não deixará de se deslumbrar com a belíssima panorâmica que esta aprazível zona verde, aos pés da vetusta Capela de Santa Catarina, oferece. O que provavelmente não lhe passará pela cabeça será o facto de boa parte do extenso relvado ter sido, em tempos, um local de sepulturas. Neste espaço operou, por um século, o primeiro cemitério público do Funchal, dito das Angústias (por proximidade à quinta com o mesmo nome, hoje conhecida como Quinta Vigia), instalado em 1837 e transferido entre 1939 e 1944 para a freguesia de São Martinho, onde mantém a velha designação. O portão original deste desaparecido cemitério, em cantaria lavrada, pode ainda ser visto em São Martinho, onde foi remontado. António Gil Gomes, reputado escritor madeirense e autor da “Compilação de Princípios de Filosofia Racional”, teve sepultura negada neste desaparecido recinto por ter renunciado à fé católica – ainda assim, foi enterrado no actual lugar do Parque de Santa Catarina, mas em sítio outrora ocupado pela pocilga dos porcos do guarda do cemitério.

De São Sebastião ao Chafariz (sem perder as botas)

Quem olhe para o Largo do Chafariz não terá dificuldade manifesta em perceber a razão do nome. Ali, ao centro, está um esplêndido chafariz… Mas nem sempre assim foi. A toponímia circundante oferece-nos algumas pistas. Largo de São Sebastião foi a mais antiga designação, por aí se ter erguido a capela desse mesmo santo, eleito (a par de São Roque) patrono secundário da cidade do Funchal em 1523, por ocasião de uma grande epidemia. Em verdade, São Sebastião e São Roque eram frequentemente invocados em tempo de peste. Dessa ermida original, demolida em 1803, apenas restou o nome do beco ali perto. Surge, então, o Largo do Mercado, denominação que nunca granjeou muita simpatia nem popularidade (para muitos funchalenses, permanecia o Largo de São Sebastião). Ali confluíam os vendedores dos mais variados produtos hortícolas e animais, sendo lugar de muita concorrência por ocasião da Festa. Mais tarde, já no século XX, aparece o popular mercado das botas, que havia de dominar o espaço por longo tempo. Foi, no entanto, o chafariz ali colocado pela Câmara em 1826 a determinar o nome derradeiro de um lugar que bem espelha a densidade histórica dos pequenos recantos da cidade.

Touradas e jogos

O momento lúdico fez, desde sempre, parte da vida comunitária madeirense. No Funchal quinhentista havia tempo e lugar para essa vertente mais leve do existir. Curiosamente, à ligeireza das práticas não correspondia um afastamento para espaços mais escusos – pelo contrário. Tinham lugar no núcleo nobre da urbe, pontuando os dias festivos e as grandes celebrações com uma apreciada descontração partilhada em proeminente cenário. Touradas e jogos de canas à frente da Catedral e jogo da “péla” nas traseiras, junto às casas dos Paços do Concelho: era no antigo Terreiro da Sé que se celebrava esse divertimento público e se cimentava, assim também, a identidade da cidade nascente. Só o popular jogo da bola, uma espécie de “bowling” medieval, seria remetido “às bandas de Santa Maria”.

O coração do Funchal

Enviado em 1486 por D. Manuel, então Duque de Beja, para ser levantado junto das casas do Concelho, o Pelourinho do Funchal, em pedra da Arrábida, acabará por ser colocado do outro lado da Ribeira de Santa Luzia, perto da desaparecida Igreja de Nossa Senhora do Calhau. A escolha da localização não deixa de ser curiosa: este elemento, pela carga simbólica que materializava, assinalava o centro urbano – temos, assim, como coração eleito desta nova urbanidade um local cercado pelas margens de duas ribeiras. A sua missão primordial, à semelhança de todos os outros pelourinhos espalhados pelo país, era a de fazer presente o poder e a autoridade de um rei distante. O instrumento de punição, no entanto, assumia papel secundário em lugares onde não havia contestação da soberania do monarca, sendo até mais conotado com uma certa ideia de municipalismo e poder local. Ainda assim, em 1835 é ordenada a demolição do antigo símbolo por “ser um emblema dos tempos feudais”. As pedras serão vendidas em hasta pública, sendo que alguns fragmentos acabariam por ser preservados no parque arqueológico da Quinta das Cruzes e mais tarde remontados na réplica que se ergueu no local original deste marco citadino, o Largo do Pelourinho.

As correntes da paz

Na manhã de 3 de Dezembro de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, ocorre o um ataque da marinha de guerra alemã à cidade do Funchal, executado pelo submarino U-38, e que tem como consequência directa o afundamento de uma barcaça portuguesa de transporte de carvão, da empresa Blandy, e de três navios estrangeiros: o lançador de cabos submarinos britânico “Dacia”, o porta-submarinos francês “Kanguru”, e a canhoeira “Surprise”, também francesa. Neste primeiro ataque morreram 8 madeirenses e 33 tripulantes dos navios aliados. Outro ataque aconteceria treze dias depois, sem vítimas. Já no ano de 1917, a 12 de Dezembro, ocorre novo bombardeamento da cidade, que causará a morte de 5 pessoas e a destruição parcial da Igreja de Santa Clara. É na sequência destes dramáticos incidentes que é construído o Monumento de Nossa Senhora da Paz, sobranceiro à cidade. Quem visite este espaço, no Terreiro da Luta, poderá observar um titanesco terço que envolve o pedestal onde se eleva a escultura da Virgem Maria – o peculiar artefacto foi realizado com pedras da Ribeira de São João e com as correntes dos navios afundados no ataque de 1916, tendo sido transportado por cerca de 300 homens, na maioria carreiros do Monte, em procissão efectuada desde o porto do Funchal, a 1 de Novembro de 1927.

Aparições na Igreja de Santo António

De acordo com o relato do Padre João Prudêncio da Costa, confessor da Madre Virgínia Brites da Paixão, recebeu esta mística funchalense várias revelações de carácter sobrenatural. O clérigo narra um ciclo de sucessivas aparições à religiosa, que terão tido maior expressão a partir de uma visão de Cristo, a 16 de Abril de 1913, na Igreja de Santo António. Seguir-se-iam relatos de outras aparições, de Jesus e da Virgem Maria, e o envio de mensagens ao Papa Bento XV. As revelações feitas por Madre Virgínia teriam uma influência decisiva na edificação da primeira ermida do mundo dedicada ao Imaculado Coração de Maria, na freguesia da Boaventura, e na construção posterior da Igreja do Imaculado Coração de Maria no Funchal, antecedendo o conhecido fenómeno de Fátima em vários anos. Na Igreja de Santo António, o lugar das experiências místicas relatadas foi assinalado com uma pintura de Luís António Bernes, realizada em 1921, tendo por base um esboço do punho da Madre Virgínia executado, segundo a mesma, por ordem do próprio Cristo.

A Capela dos Ossos

Já muitos terão ouvido falar do desaparecido Convento de São Francisco que outrora dominava o centro do Funchal no espaço que hoje corresponde ao Jardim Municipal; o que provavelmente não permanece na corriqueira memória citadina é a existência, numa das alas desse convento, de um macabro recanto que atraía a curiosidade de inúmeros visitantes: a Capela dos Ossos. À semelhança da famosa estrutura com o mesmo nome da cidade de Évora, a Capela dos Ossos do Funchal tinha as paredes totalmente revestidas de ossadas humanas, sendo os únicos elementos decorativos, para além do retábulo de S. Miguel das Almas, os milhares de tíbias e de caveiras que, em disposição cuidadosamente simétrica, preenchiam todas as superfícies, até mesmo do tecto, como podemos observar numa gravura de finais do século XVIII da autoria de John Barrow, que descreveria o mórbido lugar como “câmara das caveiras”, estimando serem em número superior a três milhares. A capela desaparecerá com a demolição do convento, no século XIX, permanecendo no Jardim Municipal o antigo escudo de armas em pedra que encimava a entrada do edifício.

O portão da resistência

O Portão de São Paulo, demolido em 1839, era uma das principais entradas na urbe, virgulando a Oeste a muralha protectora do Funchal, na extremidade da Rua da Carreira, perto da Capela de São Paulo. O local marcava um momento crucial: o dia em que os funchalenses foram chamados a dar o derradeiro sacrifício pela defesa da sua cidade, aquando do ataque dos corsários franceses, em 1566. Tendo desembarcado na Praia Formosa, Bertrand de Montluc, à cabeça de cerca de mil e duzentos homens, tentou penetrar a cidade por este ponto que se apresentava como principal acesso no percurso natural das forças invasoras. Aí, portanto, encontrou a primeira resistência, vendo-se forçado a tentar a entrada noutro lado – não sem que antes tombassem dezenas de beligerantes de ambos os lados. Os corsários acabariam por derrotar as forças defensoras em assalto à Fortaleza de São Lourenço, ficando a cidade a saque durante dezasseis pavorosos dias. Ainda hoje, perto do local onde se erguia o portão, é possível observar vestígios da antiga muralha que, durante séculos, serviu de barreira defensiva terrestre.

Bataria do Pico da Cruz

Em 1940 foi instalada no Pico da Cruz a Bataria Independente de Defesa da Costa n.º 2, uma unidade que, tendo em vista a protecção do Funchal face à possibilidade de uma acto de agressão em plena Segunda Guerra Mundial, foi equipada com três peças de artilharia Krupp modelo 1898, de fabrico alemão, calibre 15 cm. O lugar foi escolhido pela visibilidade e alcance de tiro sobre os dois principais pontos de desembarque: baía do Funchal e Praia Formosa. A distribuição espaçada das impressionantes peças ao longo de uma linha na vertente Sul da elevação segue um plano que inclui a existência de vastas galerias subterrâneas, permitindo a comunicação entre as várias plataformas e fornecendo espaço suficiente para o alojamento de mais de uma centena de militares. A toda esta estrutura acresce um sistema mais elevado de observatórios, também subterrâneo. Esta impressionante fortificação manteve-se operacional até 1996, permanecendo, actualmente, em perfeito estado de conservação.

O templo transladado

Existia no primitivo prédio da Misericórdia do Funchal, hoje edifício sede do Governo Regional da Madeira, uma capela dedicada a Santa Isabel, ermida titular do hospital com o mesmo nome que ali funcionou, à qual se tinha acesso entrando pelo pórtico brasonado mais próximo da Catedral. Na década de 30 e 40 do século XX, na sequência de um plano de reordenamento urbano e da transferência do hospital para os Marmeleiros, têm lugar os trabalhos de demolição parcial do edifício, que ditaram o desmantelamento completo da capela do século XVII. Apesar das vicissitudes, a ermida conseguirá, em grande parte, sobreviver: as cantarias do pórtico e dos varandins interiores, os azulejos, o tecto pintado e o retábulo monumental em talha dourada foram remontados, integralmente, na construção da igreja da Boa Nova, consagrada ao Sagrado Coração de Jesus, onde ainda hoje permanecem.

Orquestrofone

Encontra-se no Museu das Cruzes uma rara relíquia da “Belle Époque”: o orquestrofone. Este instrumento musical automatizado, construído em 1900 por Limonaire Frères, na França, foi pertença do visconde de Cacongo, João José Rodrigues Leitão, que o adquiriu na Feira Internacional de Paris. O seu funcionamento tem por base a leitura de cartões perfurados que regulam temporalmente os vários sistemas de produção de som, uma vez accionado o mecanismo pelo uso de uma simples manivela, o que permitia a sua utilização corriqueira, sem depender de operadores com conhecimento musical ou técnico. Como o próprio nome indica, o resultado é a harmoniosa e quase perfeita imitação de uma orquestra a executar um repertório de músicas, na sua maior parte composto por valsas ou polcas, ao gosto da época. O engenho mecânico é complementado com uma belíssima decoração e autómatos, em perfeito estado de conservação.

Passos da Paixão

Um dos pontos altos da antiga vida devocional da cidade era a procissão dos Passos do Colégio. O cortejo religioso, que saía da Igreja do Colégio rumo à Igreja de Santa Maria, evocava os últimos momentos da vida de Cristo, retratados em cinco nichos ao longo das ruas do Aljube, Pelourinho e Santa Maria. Cada um desses nichos, chamados de Passos da Paixão, devidamente identificados com cantarias em modelo semelhante ao utilizado noutras estruturas religiosas de Setecentos, possuía várias pinturas evocativas de um tormento específico do percurso de Jesus até ao Calvário. A chegada do andor do Senhor dos Passos à soleira do oratório suscitava uma paragem da procissão. Na Igreja de Santa Maria, antes do regresso ao Colégio, desenrolava-se uma grande representação cénica da crucificação que só terminava ao cair da noite. Dos cinco Passos da Paixão apenas dois sobreviveram às alterações que o século XX veio trazer à malha urbana: o Passo do Pelourinho e o Passo de Santa Maria.

Um jogo do Marítimo… no mar

Em 1922 o Funchal assiste à fundação da Liga Madeirense de Desportos Náuticos e à criação de um campeonato madeirense de polo aquático que contará com cinco clubes: Clube Sport Marítimo, Grupo Desportivo Nacional, Club Sports da Madeira, Império Foot-ball Club e União Foot-ball Club. A prática cedo ganha popularidade, granjeando um numeroso público para as partidas oficiais em pleno mar. É assim que a cidade ganha o seu mais peculiar espaço de competição, na baía do Funchal, junto ao Ilhéu da Pontinha. Em 1922, no final da primeira época desportiva, o Marítimo e o Império encontravam-se empatados, pelo que foi necessário um derradeiro jogo para decidir o campeonato, sendo que a receita de bilheteira desse embate cifrar-se-á em 53 escudos. Seria o Império Foot-ball Club a consagrar-se, por três bolas a uma, o primeiro campeão de polo aquático da Madeira.

A maior livraria da Europa

Fundada em 1886 por Jacintho Figueira de Sousa, a Livraria Esperança foi o primeiro estabelecimento no Funchal a ter por exclusiva função a venda de livros. É já a quarta geração da mesma família a gerir este espaço que, escapando à voragem dos tempos, continua fiel a uma peculiar forma de acolher quem procura mergulhar no mundo da leitura, percorrendo os labirínticos corredores entre estendais de vidas, história e sonho. São mais de 100 mil exemplares, exibidos em 1200 metros quadrados de estantes: livros de capa sempre à mostra, num colorido quase tão denso como o saber ali celebrado. Tornou-se improvável local de encontro de gerações, abrindo as portas do seu colossal tesouro à curiosidade da cidade e de quem a visita. É a maior livraria da Europa e a segunda maior livraria do mundo.

Saga de uma princesa africana

Sara Forbes Bonetta, Aina de seu nome original, foi uma princesa nigeriana membro da família real da tribo Egbado, feita prisioneira e escravizada pelo Rei Ghezo, que havia assassinado os seus pais. Em 1850, com sete anos de idade, foi enviada como “um presente do rei dos negros à rainha dos brancos”, Victoria do Reino Unido, que havia já promulgado o decreto de extinção da escravatura em 1834. A Rainha Victoria e o Príncipe Albert, impressionados com a inteligência da criança, acabariam por adoptá-la como afilhada. Em 1862 casa com o empresário e filantropo africano, o Capitão James Pinson Labulo Davies. À sua primeira filha, nascida em 1863, dá o nome de Victoria. Regressando à Nigéria, manterá sempre uma relação muito estreita com a monarca, com quem se correspondia frequentemente. Após contrair tuberculose procura tratamento na Madeira, fixando residência no Funchal onde vem a falecer a 4 de agosto de 1880, com 37 anos. Está sepultada no Cemitério Britânico.

Uma capela na garagem

O Largo da Saúde deve o seu bom nome à capela do século XVII dedicada a Nossa Senhora da Saúde. Contudo, quem por lá passe poderá ser desculpado por pensar que a pequena ermida já não existe. Construída em 1559 por ordem de Pedro de Valdevesso, esta capela particular, de razoável dimensão, estava anexa ao solar conhecido por Quinta da Vinha onde, em 1879, o galês Henry Miles instalou a primeira fábrica de cerveja da Madeira, a Atlantic Brewery (que também produzia água de soda e limonada). A natureza privada não impedia a afluência de muitos devotos a este lugar de culto que, pela própria invocação, se prestava às mais variadas promessas. Facto curioso é o de estar associada a esta ermida a única cripta tumular privada da Madeira. A capela por lá continua, amputada no seu rico património, mas de pé, emparedada por uma fachada industrial, fazendo o seu retiro numa garagem onde já funcionou uma carpintaria.

As muralhas do morro da Pena

Erguidas por disposição do Regimento da Fortificação de 1572, as muralhas do morro da Pena são resquícios da cintura de protecção do Funchal, edificada sob a orientação de Mateus Fernandes. Este segmento acompanhava o leito da Ribeira de João Gomes, escoltando o crescimento da cidade que havia galgado a ribeira de Santa Luzia, limite do núcleo manuelino, em direcção à antiga povoação de Santa Maria, inicialmente excluída do perímetro muralhado. O sistema defensivo previa a construção de uma agigantada fortaleza entre o morro da Pena e o Calhau de Santa Maria que funcionaria, a par da Fortaleza do Pico, como fecho da linha muralhada – um projecto que ficaria por concretizar. Os muros hoje visíveis na Pena constituem um dos mais antigos e maiores vestígios da sucessão de construções que formaram a chamada “cortina da cidade”.

Anti-aérea do Funchal

No Pico de São Martinho, na vertente que encara o centro da cidade, foi instalada em 1942 uma bataria fixa de artilharia anti-aérea com quatro peças Vickers, de origem britânica, que complementava a bataria fixa do Palheiro Ferreiro, do outro lado, permitindo um fogo de defesa cruzado sobre qualquer aeronave agressora. As duas posições militares, que são construídas com a escalada da Segunda Grande Guerra, pretendiam assegurar uma defesa à altura do valor estratégico do Funchal, em caso de agressão, ou entrada de Portugal no conflito. Enormes projectores de iluminação, e outro equipamento de vigilância, zelavam pela constante atenção aos céus da capital madeirense. A bataria anti-aérea do Palheiro Ferreiro foi desmontada em 1994, mantendo-se as três peças do Pico de São Martinho, recentemente restauradas.

A mais pequena capela do mundo

Amiudadas vezes indicada como a mais pequena ermida do mundo, a Capela das Almas Pobres, construída em 1781 junto a um rochedo, na Travessa das Capuchinhas, por ordem de Roque de Araújo, bem pode reclamar um outro título – o de possuir, como história fundadora, um episódio que aos olhos da cultura moderna bem poderia ser classificado como “assombração” sortuda. Segundo a narrativa tradicional, passando frequentemente Roque de Araújo, comerciante ocupado, a horas tardias no dito local, terá sido alvo de vários planos de ataque que nunca passariam à tentativa por um compreensível motivo: os assaltantes encontravam o felizardo homem sempre acompanhado, apesar do mesmo jurar a pés juntos que sempre por ali passara sozinho… O certo é que o roubo não se consumou e Roque de Araújo não teve dúvidas em creditar as almas do Purgatório com a imperceptível companhia que o havia protegido.

O Americano

Na sequência da inauguração dos primeiros dois troços do Caminho-de-ferro do Monte, que uniam o Pombal à Levada de Santa Luzia, e esta ao sítio do Atalhinho, em 1896 principia o funcionamento do menos conhecido Caminho-de-ferro Americano, que ligava a Praça da Constituição (actual Largo da Restauração) à estação do Pombal. Enquanto que no Caminho-de-ferro do Monte a operação era totalmente mecanizada, tirando proveito de uma locomotiva a vapor numa via férrea de cremalheira, neste segundo transporte público o sistema utilizado era o de tracção animal sobre carris: uma carruagem aberta, puxada por três cavalos ou mulas, sobre ferrovia embutida no pavimento com bitola de dois pés. Estiveram três destes carros, popularmente apelidados de “americanos”, ao serviço do público durante duas décadas. O Caminho-de-ferro Americano entra em declínio com a chegada e popularização do automóvel, tendo sido o serviço definitivamente suspenso a 29 de Janeiro de 1916.

Paiol Geral do Funchal

Feito de forma a afastar do núcleo urbano os perigos inerentes ao armazenamento de grandes quantidades de pólvora e munições, o Paiol Geral de Funchal é, provavelmente, a mais peculiar construção militar da cidade. A sua edificação, no início do século XIX, permite a retirada da reserva de pólvora da Fortaleza de São João Baptista do Pico e mitigação do risco que a presença dessa substância em zona povoada oferecia. É concluído em 1825, já findas as Guerras Napoleónicas e atenuada a azáfama defensiva que a ameaça de invasão havia ditado. Tem como característica invulgar a disposição em perfeita planta redonda, da muralha e do próprio edifício do paiol, única na região. Obra mais recente é a capela no seu interior, dedicada a São Nuno de Santa Maria, padroeiro da Liga dos Antigos Combatentes que ali tem a sua sede.

Cemitério Judaico do Funchal

Localizado na Rua do Lazareto, o Cemitério Judaico do Funchal foi criado, por iniciativa de Judah Allof e Isaac Esnaty, para condigno sepultamento da comunidade de judeus sefarditas e asquenazes, que veio a fixar residência no Funchal, por motivos mercantis ou terapêuticos, a partir do século XIX, e que seria incrementada com a chegada de refugiados hebreus de Gibraltar durante a Segunda Guerra Mundial. Inaugurado em 1851, manteve-se activo até 1976, data em que foi realizado o último funeral naquele espaço. A localização periférica deste cemitério, e a segregação habitual dos espaços destinados a não católicos (também observável com cristãos de denominações protestantes), segue a prática de uma época em que o catolicismo permanecia, por força constitucional, religião oficial do Estado. Algumas das inscrições nas lápides, acompanhando a tradição religiosa, oferecem uma descrição sucinta, ainda que tocante, do carácter do falecido, rematada umas vezes com a respectiva datação judaica, e outras recorrendo ao calendário cristão, numa amálgama cultural que extravasava a própria vida. Vemos, assim, inscrições como “PEDRA SEPULCRAL DO ANCIÃO RESPEITÁVEL E INTELIGENTE QUE PROCURAVA A MISERICÓRDIA E A MERCÊ HAIM BAR ISSAHAR ESNATY. QUE DESCANSE EM PAZ. FALECEU QUINTA FEIRA 16 SIVAN 5616 COM 72 ANOS”, ou como “GOLDBERG ALBERT MORSE JULHO 1-1911 – MAIO 10-1971 AFECTUOSO MARIDO PAI AVÔ «ENSINA-NOS A CONTAR OS NOSSOS DIAS PARA PODERMOS ALCANÇAR UM CORAÇÃO CHEIO DE SABEDORIA».”

A Senhora do Monte e a moda

Ao longo dos tempos, a imagem dos monarcas foi sempre objecto do maior cuidado, ao serviço de uma normal propaganda que procurava cativar o imaginário e o deslumbramento dos seus súbditos. A moda nas cortes reais e imperiais obedecia, portanto, a um interesse que ultrapassava a vaidade pessoal, ou até mesmo o conforto, e se assumia como assunto de Estado. Ora, o mesmo se passava com um outro tipo de monarquia: a de Maria, mãe de Cristo, rainha dos Céus e das devoções populares. Num costume que, embora caindo em desuso, tem os seus ecos nas fileiras de ouro que ainda adornam as imagens em tradicionais arraiais, à padroeira da ilha da Madeira destinavam-se, também, ornatos dignos de uma rainha na dianteira do estilo. O mesmo é perfeitamente visível em algumas representações setecentistas de Nossa Senhora do Monte, que nos aparece gloriosamente ataviada com joias, rendas, vestido de balão e peruca branca capaz de fazer corar de inveja Maria Antonieta e toda a corte de Versalhes. Em nossos dias permanece a tradição de vestir a imagem da padroeira da Madeira com requinte, ainda que sem a ousadia de seguir a moda feminina.

Uma prisão na torre da Sé

Quem passe pela Sé do Funchal verificará, decerto, a peculiaridade do nome da rua que ladeia o alçado norte deste monumento. Rua do Aljube. Aljube era o nome tradicionalmente dado às cadeias eclesiásticas onde se mantinham os indivíduos presos na sequência de diligências de foro religioso. No Funchal, uma das primeiras dioceses a dispor de um espaço penal desta natureza, utilizou-se a torre da Sé como cárcere para estes infelizes – homens e mulheres trazidos de todas as partes da Ilha, na sua maior parte acusados de actos aberrantes ou sexualmente desviantes, denunciados e expostos nas frequentes “devassas”, os inquéritos religiosos que corriam as várias paróquias sob a tutela de clérigos nomeados pelas autoridades diocesanas. O aljube era, portanto, local prontamente identificado como sítio de castigo para os moralmente condenados, residência de hereges, adúlteros e fornicadores.

À espera do dragão

No ano de 1387, por ordem de D. João I, estipulou-se que a procissão do Corpus Christi contasse com a presença equestre de uma estátua de São Jorge.  Este gesto de gratidão do monarca, que invocara o santo guerreiro em Aljubarrota, perduraria na tradição e levaria os principais municípios a adquirir estranhas esculturas de São Jorge, com pernas articuladas que permitiam a sua montagem no dorso de um cavalo. A magnificência da celebração era incomparável: em Lisboa, por exemplo, uma escolta de 46 equídeos das cavalariças da Casa Real acompanhava o mártir. No Funchal, o préstito levava à dianteira a imagem do santo em seu cavalo branco, honrada por um estado-maior constituído por membros das principais famílias, seguida pelos representantes dos ofícios; depois as confrarias, os clérigos, e o Bispo do Funchal que, sob o pálio suportado pelos notáveis e cercado de nuvens de incenso, levava a custódia; por fim, seguiam os corpos de ordenanças com seus oficiais e o povo, lançando danças, como a mourisca.   A antiga imagem equestre de São Jorge do Município do Funchal encontra-se, hoje, no Museu A Cidade do Açúcar, de braço erguido, como sempre, à espera do dragão.

O Vapor

Em 1837 foi construída uma casa-ponte, popularmente apelidada de “Vapor”, entre a Ponte Nova e a Ponte do Torreão, sobre a Ribeira de Santa Luzia. Com origem algo envolta em mistério, o casebre suspenso ficava perto da Rua das Dificuldades e possuía uma extremidade na antiga Rua da Princesa (actual Rua 31 de Janeiro) e a outra na margem oposta (onde agora passa a Rua 5 de Outubro), tendo sido, primeiramente, uma casa de banhos devidamente assistida por uma taberna. Com o correr dos anos, transformar-se-ia num bairro de lata em miniatura, “uma república de lavadeiras”, no dizer de Alberto Artur Sarmento, “presidida por uma velha vesga que sabia a vida de toda a gente, tanta roupa tinha já lavado”. A estranha construção, que parecia desafiar as leis da gravidade e o rigor das invernias, atraía a atenção de todos com a sua garrida cor vermelha (que lhe terá valido a designação de Vapor, por a tornar algo semelhante ao casco dos navios que chegavam ao porto). Possuía um corredor central estreito que atravessava uma série de pequenos cubículos, morada de um grupo de famílias pobres de numerosa prole. Em 1898, face à iminência de um colapso pela elevada degradação da estrutura, ordenou-se a demolição do Vapor.

Hipódromo de São Martinho

Apesar de existirem referências difusas ao costume de se fazerem corridas de cavalos na cidade do Funchal, com a Rua da Carreira a ter a origem do seu nome associada a exibições dessa natureza (como indicam alguns registos), é no século XIX que a prática adquire um espaço exclusivo preparado de raiz para o efeito segundo os moldes britânicos (por influência da proximidade à realidade cultural que o comércio e o turismo terapêutico traziam). O hipódromo foi construído em São Martinho, no planalto junto ao Pico da Cruz (onde hoje se encontra o Regimento de Guarnição n.º 3). Em 1838 escrevia John Driver: “As corridas de cavalo têm sido, nos últimos anos, estendidas a todas as partes do Continente, bem como nas Índias Ocidentais e Orientais, e a Madeira agora gaba-se dos seus cavalos favoritos e encontros anuais. O hipódromo fica perto da costa, junto ao caminho para Câmara de Lobos, a cerca de três milhas da cidade. […] Na manhã das corridas o ambiente era festivo na cidade, e todos os póneis e burriqueiros estavam reservados com antecedência. […] No lugar da pista a festividade era maior, os palanquins haviam trazido uma elegante amostra de damas portuguesas e inglesas, que deram um brilhantismo a uma aglomeração nunca igualada na Madeira. Tiveram lugar muitas corridas bem disputadas e partidas privadas, sendo os portugueses, geralmente, os perdedores nas apostas, o que não era de espantar, sendo a modalidade, para eles, uma novidade dada a equívocos. Promete, no entanto, ter sucesso, uma vez que é uma das modalidades favoritas dos madeirenses.”